terça-feira, 4 de setembro de 2012

Os super-humanos mais super




Homenagem da rede norteamericana ABC aos seus "super-funcionários"
Por Urariano Mota.
A Rede Record apresenta no “Domingo Maior” um quadro que leva o nome de Super-Humanos. São os chamados super-heróis da vida real, “pessoas aparentemente comuns como nós, com habilidades especiais”, conforme o anúncio da série, que vem dos Estados Unidos. Um release mais extenso do original fantasia:
“OS SUPER-HUMANOS apresenta histórias impressionantes e reais de pessoas que possuem habilidades únicas. Com a ajuda de uma equipe de cientistas que tentará desvendar o segredo de seus DNAs, elas tentarão compreender seus ‘poderes’. Além de destacar os avanços tecnológicos e científicos que ajudarão no entendimento da próxima geração de ‘super-heróis’,OS SUPER-HUMANOS também mostrará como o homem deve evoluir”.   
Desnecessário dizer que desfilam indivíduos com sensibilidade acima de choques elétricos, outros com cabeças de resistência de ferro para pancadas, alguns de cérebros mais rápidos que calculadoras, ou estranhos seres que veem sem uso dos olhos, emitindo sons feito morcegos, entre atletas de extremos inenarráveis, inclusive de corridas de 24 horas sem parar. Na continuação das façanhas, os extraordinários super são levados para testes físicos, fisológicos, mecânicos ou da neurologia com imagens de ressonância magnética, onde cientistas, estudiosos se mostram incapazes de explicar os fenômenos. Uma série que é uma coleção de assombros.     
De passagem, anote-se que há nesse quadro uma ideologia antiga de contrapor pessoas, numa competição que escolhe e exalta os mais e melhores, que sobrevivem à custa e acima, sempre acima, de pobres coitados, a maioria de todos nós, que não é excepcional. Dizendo de outra maneira, em séries do gênero há sempre a manifestação do gênio, do herói, do super, superior ao conjunto da massa cujo destino é ser burra, idiota, sem força, sem sentimentos, infeliz e satisfeita ainda assim. Vale dizer, o super acima da massa de normais na sua natural natureza de medíocres.  
Importa mais agora escrever, ainda que em um texto rápido, o quanto há de distorção na procura do super entre os supremos, o super como uma categoria mais que humana, como se o mercado da vida produzisse mercadorias com tarja e composição de ultra, plus, substâncias mais, qual bebida ou vitamina com aditivos que transformassem o comum na exceção. Se este colunista fosse um filósofo, saberia expressar o pensamento em ideias gerais, lapidares, dignas do respeito à tradição de Kant. Mas como sou apenas um escritor, falo do que pode vir de universal no destino particular de toda a gente.
No que posso, penso na busca estúpida, na exibição superestúpida que é o indivíduo “superior” por qualidades patológicas, acidentais, bizarras, no sentido de excêntricas. O estúpido que é a busca e mostra de indivíduos na concepção pobre de super-heróis de quadrinhos. Quem assim procura não vê que o maior milagre é a pessoa humana, a complexa e infinita possibilidade que saltou e salta do animal todos os dias. E aqui, entendam, não quero lembrar a fascinante aventura que é a realização do olho humano, ou, mais longe, o fascínio dos caminhos de mil e uma noites que se abrem para a imaginação. A essa qualidade, que separamos por rigor bárbaro de método, e que se mistura à memória e pensamento mais lógico, rebelde, a essa qualidade extraordinária da imaginação não me refiro para afirmar que mais espantoso que o super é o humano. Até porque, diriam, assim é, com os gênios. E seríamos postos de volta à desolada planície onde jazemos os comuns mortais. O nosso jaz é outro.
Aqui me refiro a todo humano que não se satisfaz com os limites de herança, condição ou azar. Entendam, para não cair no sinal oposto ao super à direita, e como um oposto falar em sua mesma língua e terreno, trazendo um super à esquerda, não quero nem devo lembrar as exceções de Lula, Machado de Assis, Edson, Aleijadinho ou Cartola. Não, prefiro abrir os olhos para o Kepler que há em todo homem, aqui e agora mesmo, que não desiste da sua luta, ao crer em objetivos na aparência inalcançáveis, ou mesmo impossíveis, mas que se tornam belos e fecundos pela rebeldia contra a sua impossibilidade. Aqui me refiro a todo comum que nos subúrbios agora, nas favelas mais inóspitas, quer ser músico, poeta, atleta, dançarino, cientista, mestre para os seus, quando tudo lhe é adverso e zombaria. Daí que pergunto: esse comum que se produz agora na fábrica de humanidades não seria superior a qualquer encenação vazia do superman ou homem-aranha?
Quantos deles eu mesmo vi, ouvi, conheci e conheço. Aqui perto da casa onde moro há um eletricista, de oficina de carro, que escreve poemas e os publica por sua conta e risco. E não se julga gênio ou super por isso. Entre amigos mais próximos, há uma pessoa que, cega, com uma perna amputada, na idade vizinha dos 70 anos, edita e faz rodar um jornal de denúncia e alerta para moradores. E quando lhe pergunto “como vai?”, ela me responde sempre “o jornal vai bem”. E aquela mãe, me perdoem lembrá-la, que ela nem sabe que a observo em segredo, e aquela mãe velha, alquebrada, a empurrar o filho adulto, paraplégico, em uma cadeira de rodas pelas calçadas da praia em Olinda? Todas as tardes, a tropeçar em pisos irregulares, com obstáculos, subindo e descendo rampas, ela o empurra com esforço, sem reclamar e sem que ninguém perceba o quanto ela é uma pessoa super. E aquele casal de homossexuais que cuida de uma velha prostituta, lá em Boa Viagem, dois homens que dão festa de aniversário para a velhíssima senhora, e não recebem nem uma placa ou aplauso por sua humanidade? E aquele carinho oculto nas mocinhas desprezadas por doença ou desgraça e que continuam a viver como se de nada soubessem, apenas baixam os olhos quando elogiadas em sua discreta elegância?
Não sei se expressei o que gostaria. Eu queria apenas dizer, enfim: como são idiotas, bobos e vazios os homens que calculam mais rápido que máquinas, os cabeças de ferro, os atletas incansáveis diante de tais super.
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Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997). Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.

Fonte: http://boitempoeditorial.wordpress.com/category/colunas/urariano-mota/page/2/

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