Da janela de casa, na tradicional Vila Arens, em Jundiaí, interior paulista, Daniela Biancardi, 36 anos, ainda criança viu o circo passar. Sem lona, o picadeiro daquela menina era formado por parentes e vizinhos, filhos e netos de imigrantes de origens diversas. “Sempre ouvia minha mãe: ‘Vai até a portuguesa comprar isso, passa na mama para se benzer, corre lá na dona espanhola para tomar injeção, diga oi a seu Julio taxista, o italiano mal-humorado’. Vivi uma infância arraigada em simplicidade, mas de personagens inesquecíveis, fortes, excêntricos, risíveis, às vezes, e trágicos também! Poetas sem saber, sábios sem serem acadêmicos.”

Em seu universo infantil, Daniela “viajava” nas histórias engraçadas narradas pelo avô, José Fernandes, o Zé Mineiro, que morreu perto dos 100 anos. “Sempre preferi passar férias ouvindo ele contar histórias, e o melhor, eram sempre as mesmas”, lembra ela, que também exercitava seu lado de produtora. “Aos 6, 7 anos, ao fim da Sessão da Tarde, ficava elaborando a continuação dos filmes. Eu me sentia personagem de histórias em quadrinhos, heroína, cantora. Sempre me enveredei pela arte criativa. Só não sabia que abraçaria essa área como profissão.”

O primeiro abraço ao mundo das artes veio suprir a carência da perda de um herói. Na adolescência, após a morte do pai, Antonio, a mãe, Maria Antonieta, 70, incentivou a filha a entrar no grupo de teatro da escola. “No primeiro encontro o professor pediu que eu improvisasse algo. Vi que tinha gente que parou para me ouvir. Pensei: ‘Puxa, teatro é isto? Gostei e não parei mais’.”

Com 17 anos ela deixou Jundiaí e virou mambembe. Formou-se na Escola Superior de Artes Célia Helena, na capital paulista, e partiu. Incentivada pela família, se mudou para Paris, onde estudou na École Internationale de Théâtre de Jacques Lecoq, mestre da pantomima, que morreu em 1999. Com Giovanni Fusetti, fundador da Kiklos Scuola, em Firenze, Itália, aprendeu a reinventar o mundo através da arte corporal. E viveu experiências do teatro nas ruas de cidades da Inglaterra, Escócia e Irlanda.

Na volta ao Brasil, em 2001, Daniela se dedicou a mudar, pelo sorriso, a realidade de crianças carentes de Paraisópolis e Parelheiros, na zona sul da capital paulista. “Tudo o que a gente faz fora vem com a gente. Trabalhando com jovens que nunca tiveram acesso à arte, comecei a descobrir que meu trabalho fazia sentido. Perceber as mudanças que o teatro proporcionava me tocou e foi me nutrindo como artista e palhaça.”  

Em 2007, recebeu um convite de Jonathan Gunning, ator e palhaço irlandês, e se tornou a primeira brasileira a excursionar com a ONG Palhaços sem Fronteiras, criada para levar alento a crianças em áreas de conflito ou risco social. Destino: África do Sul e Lesoto. “Foram dois meses de apresentações em dezenas de aldeias. São países infectados pela epidemia do vírus HIV, onde o número de crianças orfãs é assustador. E palhaço não tem intenção de ser herói, mas se relacionar pelo riso, improviso e gesto criativo pode ser um caminho para compreender esta dor e este vazio.” Ao voltar para o Brasil, tornou-se  orientadora do curso de humor da SP Teatro, escola criada por uma associação de artistas da Praça Roosevelt, no centro da capital.

Reconhecida no meio e condecorada, na categoria cultura, com o Prêmio Claudia 2011, que reconhece o trabalho de mulheres que realizam e transformam a vida dos brasileiros, ela, modestamente, diz que ainda tem muito a aprender. E busca esse conhecimento no universo infantil. O mesmo que levou o mundo do circo à janela de sua casa e que a fez ver a realidade de muitos países por trás de seu nariz vermelho. “Conquistei muito por erros, choros e tropeços também. Os acertos são puro bônus para poder celebrar entre amigos ao final do espetáculo. Não me convencem os palhaços que só desejam ser assertivos ou supersimpáticos, porque palhaço que também sabe errar com a criança cresce a cada segundo.”