Falar de reserva de mercado nos dias atuais poderia soar como um golpe de estado totalitário na mente de quem lê. Para outros, poderia ser uma ameaça ao neoliberalismo. Alguns diriam que é bolchevismo, comunismo ou ainda bolivarianismo. Para quem produz quadrinhos, entretanto, soaria como uma garantia de sobrevivência e ainda uma valorização de um trabalho que rende pouquíssimo para quem o cria. Mas vamos entender a reserva de mercado e seus antecedentes.
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A Lei 12.485 tramitou por cinco anos no congresso nacional e entrou em vigor em junho de 2012. Ela dá conta de que uma porcentagem da programação semanal dos canais de TV a cabo no Brasil deve ser produzido em terras tupiniquins. Segundo a ANCINE, Agência Nacional do Cinema, “Abrindo o mercado a novos competidores, a lei amplia a oferta do serviço e estimula a diminuição do preço final ao assinante, além de estabelecer a obrigação de programação de conteúdos brasileiros nos canais de espaço qualificado, e de canais brasileiros dentro de cada pacote ofertado ao assinante”.
Se uma lei semelhante fosse aplicada aos quadrinhos, o preço do quadrinho nacional seria mais competitivo com o dos quadrinhos licenciados por grandes empresas como Marvel e DC Comics. Além disso, o fomento para essa produção também geraria uma profissionalização do insipiente mercado brasileiro de quadrinhos – que hoje, se resume basicamente à Turma da Mônica, de Mauricio de Sousa.
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Em sua defesa das cotas de conteúdo, a ANCINE prossegue dizendo: “Os produtores dos EUA, por exemplo, têm garantida essa demanda potencial pelo grande tamanho de suas empresas, que têm subsidiárias em todo o mundo. O que é produzido por essas empresas é automaticamente absorvido por suas subsidiárias.Na Europa as cotas são de 50% de conteúdos europeus no espaço qualificado em todos os canais. O mecanismo das cotas garante uma demanda potencial mínima que possibilita a existência da produção nacional em bases capitalistas, sem o demasiado apoio do erário público. As cotas permitem a convivência, nos mercados locais, entre a produção audiovisual feita nesses países e a produção internacional sempre comprada a preços muito baixos, pois seus custos de produção já foram inteiramente pagos nos mercados onde foram produzidos”.
Se um mecanismo de cotas fosse instaurado para os editores de quadrinhos brasileiros, tanto o lado do produtor quanto do editor seriam beneficiados. Como diz o texto da ANCINE sobre custos de produção inteiramente pagos, vale lembrar que grandes empresas de quadrinhos como a Clamp, a Bonelli, a Les Humanoids Associès, Marvel e DC Comics vivem também de licenciamento de suas marcas e personagens. Isso rende a elas bilhões de dólares que não vêm apenas dos quadrinhos – mas que começam por lá. É um dinheiro e um amor à marca que são distribuídos na TV, no cinema, em bonecos, camisetas e outros produtos oficiais.
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João Goulart, Juscelino Kubitschek e Roberto Marinho
Gostaria também de lembrar que durante o governo João Goulart, ora, antes do Golpe Militar de 64 que afundou o país em trevas, uma lei parecida com a 12.485, só que voltada para os quadrinhos, foi posta em evidência. Naquela época, segundo a revista Publicidade & Negócios, a realidade era outra: 20 milhões de exemplares vendidos por mês, 100 mil gibis a cada mês ou 240 milhões de exemplares vendidos por ano. Segundo Gonçalo Júnior, em seu maravilhoso livro A Guerra dos Gibis, os olhos dos quadrinistas naquela época estavam voltados a Jango e sua promessa de lei de reserva de mercado para os gibis nacionais.
Por aquela lei, as editora deveriam publicar a partir de 1963, 40% da sua produção em revistas nacionais, aumentando para 50% e 60% em 1964 e 1965, respectivamente. Isso também afetava os jornais e seus cartuns e tirinhas, ao que a Folha de S. Paulo e o Diário de Notícias se mostraram favoráveis. Entretanto, à época de fazer valer o decreto, várias editoras brasileiras se uniram e pediram anulação do decreto por ser “algo inconcebível”.
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“Para eles, a medida unilateral do presidente a favor dos artistas deu poderes ao estado para interferir com amplos poderes no mercado editorial de gibis e, por tabela, nos rumos de seus negócios. Mas não deixaram barato. Uma semana depois da publicação do decreto, advogados representantes da RGE, Ebal, O Cruzeiro e Abril impetraram um mandado de segurança, “em caráter preventivo”, no STF contra a lei de nacionalização. Argumentaram que a medida seria inconstitucional por ferir a liberdade de mercado”. (JUNIOR, 2004, p.370)
O STF anulou a medida de jango pois não cabia ao poder do líder da nação a licença ou não de publicação de livros e periódicos. Outro ministro do STF, entretanto, pediu para analisar o caso. Quando o resultado saiu a favor dos artistas, entretanto, já era tarde. O golpe militar já havia se instaurado, o marechal Castelo Branco havia assumido o poder e a lei acabou por ficar sem efeito.
Sabor Brasilis, de Pablo Casado e Hector Lima e Felipe Cunha e George Schall
Sabor Brasilis, de Pablo Casado e Hector Lima e Felipe Cunha e George Schall
As idas e vindas do capitalismo e do poder novamente privilegiando os exploradores e denegrindo os explorados. Seria uma ótima, para nós, produtores de quadrinhos, uma lei dessas. Sonhar não custa, mas do jeito que as coisas vão, acho dificílimo algo do gênero acontecer.

Fonte: https://splashpages.wordpress.com/2016/08/16/a-reserva-de-mercado-para-o-quadrinho-nacional/